Por: Diego El Khouri
Eu conheci o poeta Marcelo Nietzsche em 2014 no sarau Ratos Di Versos, evento que acontece toda quinta feira na Lapa (RJ). Na ocasião eu estava morando no Rio de Janeiro.
***
"Marcelo Nietzsche nasceu em 1964. Sua identidade atualmente informa que ele é natural do Rio de Janeiro, mesmo sua certidão de nascimento afirmando que ele é carioca, nasceu na Guanabara e para viver, as leis dizem que ele tem que mentir, negar.
Então, está bem. É natural de um país que o futuro rei da metrópole declarou independência da colonia e se tornou o primeiro imperador desta, depois rei daquela.
De um país em que um militar monarquista declarou república e o fim da monarquia.
É integrante do Ratos Di Versos, um coletivo do Rio.
Sério? é jornalista formado pela PUC, webriter e arquiteto da informação."
Abaixo a entrevista que fiz com esse grande escrivão delirante da palavra.
1)
Como se dá o seu processo artístico e existencial dentro da poesia, educação,
no panorama cultural da cidade que reside e qual paralelo faz com artistas de
outros estados do Brasil?
Aí
são diversos caminhos que se entrecruzam e se distanciam nesta pergunta.
Não
há um processo em si. No âmbito artístico o que há é o que alguns rapidamente
preferem classificar como epifania, ou talvez dom, mas é como uma vez
perguntaram a Picaso, diante de obras como cabeça de touro, que é um guidon de
bicicleta fixado a um selim, “como você procura essas coisas? esses achados?”
...”eu não procuro, eu encontro”. É isso. Não crio, produzo ou nome a ser dado como epifania ou algo assim, mas é
algo que já existe internamente, em constante transmutação, que por motivos
como sons, sinais, luzes, vento frio, ou chuva, encontro o caminho, o fluxo.
É,
talvez possa-se dizer que é um processo, mas orgânico e impreciso como o viver.
E nada pode ser superior ao viver, nem estruturas nem desejos. Sou um taoista
com sangue punk, expressionista, ouvinte de Teixeirinha até noise, passando por
jazz, leitor de ensaios, poemas, romances nem tanto ... não por escrever “ curto”, haikais, mas
observo uma necessidade muito grande atual de se escrever poemas mais longos,
uma necessidade não poética, porém existencial ... fruto da comunicação-não dos
tempos atuais, de em vez de encontrar o sentido no texto dar um sentido com a
audição, leitura ao texto ... um processo de negação do outro e por isso textos
longos para não se perder o sentido que se perde ao ler
No
Rio o panorama cultural tem suas especificidades. No que concerne às artes
teatrais, cinematográficas, e muito da musical, existe o dono, senão proprietário
ao menos ditador de preferências que um
canal de televisão E os teatros se
entopem de musicais, de preferência de uma artista morto ... ano que vem
estreará um sobre mim? será que morri ou morrerei? ... ou então de musicais ou comédias fulas.
Na
música não existe espaço razoavelmente decente para se tocar. São lugares para
vinte. sessenta, menos de cem pessoas com exceção do Bar do Nanan .... os
maiores estão abertos para o que der retorno. Então aqueles espaços são muito
válidos, no entanto, não é algo estimulante. Estimulante é ocupar os espaços
públicos, interferir no espaço público, se articular nas brechas do Estado, e
trazer a população, as pessoas para vivenciar o meio onde vivem e circulam. É
uma pauta de resistência. Como digo em uma cidade onde a cultura na rua é
cerceada, até recitar poemas de amor é subversivo .
Projeto
como o VAI de São Paulo que encampavam projetos pela sua qualidade, seu projeto
e não pelo retorno de público, financeiro, atualmente com o novo prefeito vem
sendo desmantelado.
No
Rio produtores culturais, poetas, diretores de cinema, e outros, se articulam
para conseguir ganhar dinheiro do Estado, com a satisfação deste, o que será
feito, qual a repercussão, qual o ganho humano para as pessoas não tem o menor
interesse para nenhuma das partes.
Mas
sempre foi, mais ou menos assim. Meu pai já me dizia há décadas:” se quer ser
poeta trate de passar em um concurso público”.
2)
O seu livro "Pequeno Caderno de um Calhorda Bem Resolvido", tem uma
visão niilista, erótica e satírica bem intensa e ácida em relação a sociedade
em que vivemos. Como é produzir uma literatura tão provocativa nesse período
politicamente correto em que estamos situados?
Correto,
certo / o politicamente correto / passou perto.
A
resposta em si é: não sei. Só sinto as conseqüências e não é isso que alterará
meu humor. Tenho um humor muito sarcástico, caótico. Isso nem é bom nem mal.
Para alguns pode ser legal, ou bom, afinal temos que ser construtivos, positivos,
aglutinadores. Sempre gostei de trabalhar no contra-pé. Quando mais novo era
goleiro para atrapalhar a festa do jogo. Não era fantástico, mas era muito bom.
As
pessoas querem textos onde possam se encontrar, se identificar, se abraçar, se
sentirem confortáveis. Mesmo quando mais suave não consigo incorporar esse
conformismo, Prefiro algo que desarticule e me faça me rearticular.
Além
do que é muito divertido chutar a hipocrisia latente e invisível por excesso de
visibilidade. Desde pequeno em Botafogo me incomodava a placa perto do
cemitério que dizia “no vermelho piscante” - piscante é qualidade, é adjetivo,
não verbo, não tem ação. Mais de três décadas a placa ainda está lá e foi sendo
adaptada para outros lugares, cidades.
Há
que se ter algo que tire da mesmice, um provocador, um polemista. Ou como escrevia
Nietzsche: “não acredito em uma verdade que não venha com uma gargalhada”
O
mais complicado é que o politicamente correto não tem senso de humor, é um
viver enquadrado, travado, funcional, e com isso as articulações humanas,
sociais, afetivas, se vêem igualmente engessadas; há uma redução de opções
existenciais, de vida.
3)
Acredita, como Paulo Freire, que a "educação é revolução? Como trabalhar a
educação em um Estado que manipula e sabota o ensino desde a base?
Sempre
foi objetivo de governo não liberais – liberais no sentido antigo, de livres,
de libertadores – o controle, o encampamento, a educação como um meio de
permanência. E quando não percebe-se que o esfacelamento da educação produz o
mesmo efeito. Não mais a permanência pela integração, pelo enquadramento de um,
como diria Gramnsci, aparelho ideológico, mas pela fraqueza cognitiva,
perceptiva, argumentativa, pela carência de opções que permitam uma visão
ampla, principalmente de se buscar soluções, alternativas. Isso não é dado com
esquemas rígidos, mecânicos.
Mesmo
na não existência de manipulação ou sabotagem processa-se, pois é necessário,
apesar de tudo, um pĺanejamento de ideológico ou de princípios, e aí ocorre a
grande dificuldade que é humana: o despegar-se. Assim como a função dos pais é
ensinar e demonstrar para os filhos que eles são dispensáveis; neste ponto
deve-se ir além das próprias percepções, ideologias, crenças. Tem-se que ser
aberto, inclusive para entender, que para alguns um sistema mais programático,
rígido, tem uma funcionalidade maior. É uma questão não de educação mas de
instrução, de puxar de dentro do outro e não empurrar para dentro.
Então
essa visão se principiaria antes na concepção de uma sociedade, Estado, que não
tivesse como primazia a igualdade, pois não somos iguais, somos semelhantes,
parecidos, e sim na desigualdade e na sua valorização. Regozijar-se das
diferenças.
4)
O que te provoca espanto?
Muitas
coisas.
A
dificuldade cada vez maior de se aceitar posicionamentos diferentes dos
próprios. São neoliberais catequizando pelo pensamento único, são grupos
militantes lutando por visibilidade, são ditos poetas, todos se encastelando em
visões únicas e inquestionáveis.
É
o ódio crescente pela dificuldade de comunicação. Estes tempos digitalmente
narcisisticos e covardemente anônimos não querem permitir a diferença de
opiniões, perspectivas, sequer de construção e explanação do pensamento.
Pode-se pensar diverso desde que, ao menos, se estruture o pensamento da
maneira aceita previamente. Não alcanço Maiakovski de uma nova idéia uma nova
linguagem – não como uma coisa obrigatória.
E
não se percebe, por exemplo, que um “típico” comunista é tão patriótico quanto
um reacionário e igualmente, neste sentido, nocivos para a produção cultural
dentro de um país.
É
alguém que se acha “legal” e “ de bem consigo mesmo” por participar de causas,
que ajuda os outros e não percebe que é um hipócrita: se faz “o bem” e se sente
“bem consigo mesmo “ por isso está só ajudando o seu ego . ... Da mesma forma
um ferrenho combatente da autoridade se posiciona como autoridade, mas libertadora?
livre? não me é muito distante.
5)
O que anda lendo ultimamente?
Livros
de estudo culturais como Homi Bhabha, Frantz Fanon, Beatriz Sarló, Aganbem, com
um pouco de poesia beat e Murilo Mendes. Tenho por hábito ler uns três, quatro
livros ao mesmo tempo.
Além
dos diversos fanzines que chegam nas mãos vindo de diversas partes do Rio, de
São Paulo, Salvador, Minas.
6)
Quando cria em algum momento pensa no receptor? Existe esse diálogo artista e
público?
Realmente
não. Porque é o seguinte: como já disse antes cada vez mais se busca dar um
sentido no que se lê em detrimento de tentar encontrar um sentido na obra. O dito receptor vai interpretar, e essa é
quase uma exigência moderna, a potência do interpretar, o que quiser e como
quiser. Então ...
O
que me percebo construindo, tentando encaminhar, adivinhar, é o “efeito” que
terá ... a conclusão, a interpretação não.
Esse
diálogo depois das vanguardas do início do século XX, principalmente depois da
experiência dadaísta ficou muito confuso; pois qualquer coisa podia ser arte,
por assim dizer. E entrou-se em uma fase, que aliás não se saiu, por demais
conceitual. Tão conceitual que o artista não consegue transpor para a obra o
conceito, há a necessidade de expor, explanar, esmiuçar o conceito. O texto
explicativo, o catálogo da exposição se tornou, muitas vezes, mais importante
que as obras.
É
como o poema Os Homens Ocos de T.S.Eliot, que por sinal eu gosto, mas as notas
explicativas ocupam quase o mesmo número de páginas. Explicações de que um
trecho do poema se remete a um poema de tal poeta e que pro tais coisas foi
assim escrito. Sinceramente, uma citação tem valor dela, desvinculada, da
obrigação de conhecimento contextual.
7)
Poesia.
Haikus:
Basho, Issa. Fernando Pessoa; Mário de Sá-Carneiro; Nicolas Behr; T.T.Catalão;
Jacques Prevert; Ana Cristina César; Gregory Corso, Leonard Cohen; Leminski;
Geotffried Benn; Ernst Stadler; Georg Trakl; Lautreamont; Blake. Lorca; e
muitos mais . Com esses compreendi, percepi, assimlei, sei lá, que a poesia faz
parte, é um viver; um diálogo de estar-no-mundo; menos ou mais produzido.
Da poesia de hoje não cito poetas porque alguém vai se chatear
pelo esquecimento, ainda mais se não for esquecimento. O certo é que como
sempre Millôr ainda é vivo: “poesia é um milionésimo do que se publica como
poesia”.
Mas quando falo em poesia como diálogo e no sentido,
por exemplo de diversos haikais, onde o poema faz parte de um desenrolar da
vida. Nunca como poesia catártica ou outra qualquer onde a importância está
centrada no eu, na exposição da pessoa, enquanto veículo dela se expor, se
resolver, se desenrolar, ou qualquer coisa do gênero - é a poesia-auto-análise,
a poesia-me-vejam. Da mesma forma tenho muito ressalvas quanto a poesia
militante, praticada em larga escala atualmente; é a poesia do poeta-grupo-gênero-etnia
que deseja a visibilidade para sua causa. Essa poesia-de-militância tem seu
foco e sua urgência na militância perdendo-se enquanto literatura. E exatamente
por essa urgência tem um valor histórico, social, antropológico mas carrega em
si um esquecimento futuro enquanto literatura. O maior exemplo disso é Brecht
cujos poemas programáticos somente são lembrados por militantes.
O dálogo se dá com o viver, com hoje, mas também , não exatamente com o
futuro, com a questão da permanência. A obras auto-destrutivas ou feitas para
perecer que permanecem.
8)
Cinema.
Expressionismo
alemão; filmes experimentais das décadas de vinte, trinta; cinema noir, Roger
Corman; Irmãos Marx; Pasolini. Sou chato para filmes: não gosto de conversar
sobre filmes que acabei de ver, só depois de alguns dias. Filme é aquele que
faz você sair “diferente” de quando entrou. Não porque você se emocionou, esse
sentimento rápido e frágil, aquela lágrima que produz grandes bilheterias.
Quando pequeno minha família não queria que eu sentasse perto quando íamos ver
os Irmãos Marx ... eu ria muito. Assim também em Love Story ... eu ria muito.
9)
Diversidade cultural.
Existem
muitas faces no que se refere à diversidade cultural.
Primeiramente
o conceito dos diversos aspectos como linguagem, culinária, e tais, que definem
as pessoas em um determinado território, com isso pode-se compreender o
processo de diferenciação entre elas. Isso forma uma identidade cultural, que atualmente e antes, com diásporas, exílios,
imigrações vão para além do território como algo físico.
Porém, a
coisa se complica quando se parte para fazer uma defesa da diversidade cultural. Certamente a “globalização” pode ser algo perigosa
para ela. Mas a fase atual não busca a homogeneização. Muito pelo contrário, há
um incentivo, uma criação de multiplicidades ... quanto mais mercado mais consumo
mais produção ... o mote é de que tudo é produção, tudo é consumo ... não se lê
mais um livro, se consome um livro. Como? eu não como papel! Uso óculos de
tanto que a leitura “consumiu” a minha vista.
Ou seja, o
perigo não está na homogeneidade, mas no achatamento das potências culturais,
na redução de suas diferenças. Hoje em dia não existe uma grande distância entre
uma música sertaneja e um pagodinho, por exemplo. Você pode transpor as letras
de uma música para outra e é a mesma coisa, a mesma experiência; assim também
trocar somente o andamento, sem grandes alterações de arranjos, notas, escalas
e uma será a outra e vice-versa. Existindo parâmetros também existem as curvas
fora dos parâmetros que já são esperadas e maleavelmente serão “consumidas”.
No entanto,
sempre haverá brechas, caminhos invisíveis, despercebidos, para se trabalhar
fora da marca.
Não como mas
como arte plástica, curiosa é a situação diversa entre Rio e São Paulo. Como as
grandes galerias se mudaram para São Paulo – umas poucas alternativas ou não
começaram à pouco a se estabelecer no Rio – a grande parte da produção de artes
plásticas paulista tem seu foco em galerias, no expor e vender, limitando-se
nas experiências, ao contrário da produção carioca. E exatamente por isso
galerias começaram a ser abertas no Rio.
Mas um grande
problema da questão da diversidade cultural está nos seus defensores, na formulação
conceitual da coisa. Vinculando a diversidade cultural
formadora de uma identidade cultural em uma
fortaleza que não se deve tocar eternamente. São os adoradores de tradições,
muitas vezes louvando uma pureza quase ingênua .... não a da cultura mas a deles. Inexiste esta pureza: o samba,
tradição brasileira, o candomblé, tradição uruguaia, são frutos de misturas
culturais assim como o jazz, o blues. O haikai, o reggae, tradições literárias
japonesas, assim como a própria língua ipônica são variações do chinês. Pior a
Argentina cuja música, o tango, tem como maior cantor um francês e o maior
compositor um paulista de Santos. Uma das primeiras grandes equipes do Rio de
funk – chamado hoje em dia de nossa música, música do povo, etc – a Chasbox
tinha, e tem, seu som baseado em Kraftwerk e New Order – duas bandas brancas,
uma de alemãs e outra de ingleses.
Essa formulação
da tradição atrapalha a própria dinâmica cultura, a
sua permanência. Não que a tradição, o jongo imutado, ou outra forma de
expressão devam acabar. Não é isso. Mas esta dimensão grandiosa e inviolável é
prejudicial a ela mesma, construindo seu progressivo esvaziando até ser
recolhida em museus ou ficarem esperando um arqueólogo desenterrá-la. Enquanto
isso quem não se insere, não se adere, é discriminado.
Agora, quanto
a mim, acho um debate válido mas vazio. Não entendo o não reconhecimento
da diversidade, pois é a mesma tecla sempre: não
somos iguais, devemos nos regozijar das diferenças. A igualdade almejada quando
realmente for alcançada, o que nunca acontecerá, será um milésimo de segundo
antes da pulverização total da espécie humana.
10)
Próximos passos.
Conseguir
publicar livros de poemas, ensaios, de preferência sem ter que bancar e que
tenham distribuição; que é a grande maldição do Brasil
E
continuar com o coletivo Ratos Di Versos
11)
Epitáfio.
Vim
Vinho
Velho
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